Manifesto em Desfavor da Decisão do CONAMA para Revogação das Resoluções 284/01, 302/02 e 303/03

Em resposta aos acontecimentos do dia 28 de setembro de 2020, ocasião da reunião do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), ora presidido pelo Ministro Ricardo Salles, cujo resultado motivou na desaventurada decisão pela revogação das Resoluções n° 284/01, n° 302/2002 e n° 303/2002. Neste contexto, a Federação Nacional das Associações de Engenharia Ambiental e Sanitária (FNEAS) vem a público lamentar as referidas decisões, mediante posicionamento técnico e científico acerca dos efeitos negativos e dos prováveis prejuízos ambientais a elas atrelados, que oportunamente convém elucidar.

Os instrumentos de tutela ambiental encontram fundamento no texto constitucional, ante o dever da coletividade e do Poder Público pela garantia da preservação e proteção do bem ambiental. As resoluções do CONAMA têm expressado a consolidação progressiva do regime jurídico e da política ambiental no Brasil desde o início da década de 1980, sendo o CONAMA órgão consultivo e deliberativo do Sistema Nacional de Meio Ambiente, criado por força da Lei nº 6.938/81. Neste sentido, Sarlet e Fensterseifer (2020) asseveram que “as resoluções do CONAMA são dotadas de caráter técnico nas diversas matérias regulamentadas, inclusive com conteúdo não jurídico indispensável à regulação, cumprindo um papel absolutamente necessário à implementação da Política Nacional do Meio Ambiente”.

A ação do dia 28 de setembro teve como fundamento a alegação desacertada de que as Resoluções 302/2002 e 303/2002 resultavam em redundância e sobreposição a leis supervenientes, especificamente a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006) e o Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012). No entanto, ao contrário do pressuposto arguido alguns pontos elementares foram ignorados, a saber:

  • A Resolução nº 302/02 estabelecia faixa mínima de preservação permanente em 100 metros das margens de represas artificiais, nos termos do artigo 3º, I. Por isso, supria uma lacuna do Código Florestal, que limitava-se a definião de APP com aquela situada “ao redor das lagoas, lagos ou servertários d’água, naturais ou artificiais”, sem observar uma metragem específica, deixando a critério do órgão licenciador tal definição, o que poderia abrir a possibilidade de ocupação por empreendimentos imobiliários, por exemplo.
  • No caso da Resolução nº 303/02, dispunha sobre as áreas reservadas a proteção de restingas, ao estabelecer a faixa de 300 m da linha preamar, metragem esta não observada pelas Leis mencionadas. A relevância ecológica da restinga é notada por ser uma área de transição entre o ecossistema presente na faixa de praia, dotada de alta riqueza em termos de biodiversidade, servindo de abrigo de espécies ameaçadas, além de fornecer recursos naturais utilizados para fins de alimentação, medicina e ornamentação. Ademais, o ecossistema é parte do bioma da Mata Atlântica, sendo o compartimento mais impactado em termos continentais. Observação importante a se fazer é que, no antigo Código Florestal, Lei nº 4.771/1965, eram consideradas Áreas de Preservação Permanente as demais formas de vegetação natural situadas nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues (art. 2º, alínea f), ou seja tratava a região preservada como um domínio ecológico e não como tipo de vegetação. No mesmo sentido converge o Programa Proteção da Floresta Atlântica, publicado no ano de 2002, disponibilizado pelo ITCG, de que a restinga corresponde geologicamente aos cordões de areia sob influência marinha e compreende desde a vegetação fixadora de dunas até as fisionomias de porte arbóreo. Já o Novo Código Florestal alterou a redação legal de modo a apontar a própria restinga como vegetação fixadora de dunas, garantido apenas a ela proteção a título de Área de Preservação Permanente (APP) e não qualquer tipo de vegetação que fosse fixadora de dunas, como poderia se compreender pelo teor da lei anterior.

Em sentido contrário das desvirtuadas alegações proferidas pelo Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, as normativas que deixaram de vigorar não possuem dispostivos “ilegais”, “inúteis” e “pleonásticos”. Tal entendimento pode ser ilustrado à luz da jurisprudência recente do STF, ao reconhecer que as resoluções do Conama constituem objeto do controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade, como destacado pelo Ministro Edson Fachin no julgamento da ADI 5547/DF, julgado pelo Plenário Virtual do STF, em 22/9/2020, interposto pela PGR em face da Resolução nº 458/2013 do CONAMA, a qual dispõe sobre o procedimentos para licenciamento ambiental em assentamentos de reforma agrária. Segundo o Ministro Edson Fachin, “tal qual o poder normativo das agências, a Resolução impugnada, editada no exercício da competência do art. 8º, I, da Lei n.º 6.938/81, é ato normativo primário, dotada de generalidade e abstração suficientes a permitir o controle concentrado de constitucionalidade”.

No caso da Resolução nº 303/02, o entendimento do STJ foi no sentido de que “o órgão não exorbitou de sua competência ao fixar a faixa de 300 metros medidos a partir da linha de preamer máxima como restritiva ao direito de propriedade, tratando-se de texto normativo recepcionado pelo regime do Código Florestal de 2012”.

As referidas revogações revelaram flagrante ofensa ao princípio da proibição de retrocesso socioambiental, pois atingiram o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Além disso, não sendo menos importante mencionar que na ocasião foi revogada a Resoluções nº 284/01, sobre licenciamento para irrigação, e criada nova normativa para o licenciamento da atividade de coprocessamento de resíduos em fornos rotativos de produção de clinquer (Res. nº 499/2020). Questiona-se, nestes pontos específicos, a decisão precipitada de revogação da 284 e criação da 499, uma vez que reconhecia-se por parte dos especialista a necessidade de ajustes nas normativas existentes, porém, sem qualquer tipo de ação do Ministério neste respeito.

Especificamente falando de usos alternativos de resíduos, a Res. CONAMA nº 264/99 já tratava do licenciamento de fornos rotativos de produção de clínquer para atividades de coprocessamento de resíduos. A Resolução trazia limitações, por exemplo, ao tipo de material, com restrição do uso de produtos com maior grau de toxicididade e maiores riscos de impacto ambiental e de segurança associados.

É notável a mudança de comportamento da gestão ambiental em relação à participação da sociedade junto ao CONAMA. No último ano, o Conselho teve o seu número de membros reduzido de 96 para 23, com aumento de representatividade do Governo Federal. A pauta da reunião do dia 28 foi definida 3 dias antes, no dia 25/09. Por se tratar de pauta com mudanças expressivas nas normativas, era de se esperar maior consideração da opinião pública e da sociedade civil.

Embora se tenha ciência da estrutura do sistema ambiental do Brasil, no qual as decisões mais restritivas podem ficar a encargo dos Estados e Municípios, é necessário reconhecer a importância do posicionamento de instutições federais, como o CONAMA, no direcionamento do “tom” da política ambiental nacional, de forma a nortear ações alinhadas à proteção e bom uso de nossos recursos e aos preceitos do desenvolvimento sustentável. Assim, a FNEAS reforça o voto de repúdio quanto a revogação das mencionadas Resoluções, bem como transparece seu descontentamento com a condução do CONAMA, em despeito a todo um ordenamento pátrio constituído, e firma um compromisso em apoio a reversão das decisões e abertura de maior participação popular nas questões que envolvem a seara ambiental.

Manifesto elaborado no âmbito da Gerência Técnica na FNEAS por meio do empenho dos seguintes profissionais:

Antônia Tatiana Pinheiro Do Nascimento – Fortaleza/CE

Elisa da Costa Guida – Jundiaí/SP

Luiza Scarpim – Curitiba/PR

Referências:

BRASIL Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação.

BRASIL, Lei nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica.

BRASIL Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nºs 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nºs 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de agosto de 2001.

BRASIL, Resolução CONAMA nº 264, de 26 de agosto de 1999. Licenciamento de fornos rotativos de produção de clínquer para atividades de co-processamento de resíduos. Publicada no DOU nº 54, de 20 de março de 2000, Seção 1, páginas 80-83.

BRASIL, Resolução CONAMA nº 284, de 30 de agosto de 2001. Dispõe sobre o licenciamento de empreendimentos de irrigação. Publicada no DOU nº 188, de 1 de outubro de 2001, Seção 1, página 153.

BRASIL, Resolução CONAMA nº 302, de 20 de março de 2002. Dispõe sobre os parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno. Publicada no DOU nº 90, de 13 de maio de 2002, Seção 1, páginas 67-68.

BRASIL, Resolução CONAMA nº 303, de 20 de março de 2002. Dispõe sobre parâmetros, defi nições e limites de Áreas de Preservação Permanente. Publicada no DOU nº 90, de 13 de maio de 2002, Seção 1, página 68.

BRASIL, Resolução CONAMA nº 458, de 16 de julho de 2013. Estabelece procedimentos para o licenciamento ambiental em assentamento de reforma agrária. Publicação DOU nº 137, de 18 de julho de 2013, pág. 73.

BRASIL, Resolução CONAMA nº 495, de 19 de agosto de 2020. Altera a Resolução 406, de 02 de fevereiro de 2009, que estabelece parâmetros técnicos a serem adotados na elaboração, apresentação, avaliação técnica e execução de Plano de Manejo Florestal Sustentável-PMFS com fins madeireiros, para florestas nativas e suas formas de sucessão no bioma Amazônia. Publicado no DOU nº160, 20 de agosto de 2020, Seção 1, Página 90.

Sarlet, I.W.; Fensterseifer, T. Direitos Fundamentais. Resoluções do Conama: rumo ao estado de coisas inconstitucional ambiental. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-out-02/direitos-fundamentais-resolucoes-Conama-proibicao-retrocesso-ecologico>. 02 out. 2020.

STF. ADI 5547 DF – Distrito Federal. Partes REQTE.(S): PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA. Publicação DJe-262 06/12/2018. Julgamento 4 de dezembro de 2018. Relator Min. Edson Fachin.

1 comentário em “Manifesto em Desfavor da Decisão do CONAMA para Revogação das Resoluções 284/01, 302/02 e 303/03

  1. Vera Pinheiro Responder

    Ato de Repúdio bem estruturado e com embasamento legal.Parabéns à FNEAS.
    Como cidadã brasileira, manifesto também meu repúdio aos atos do Ministro Ricardo Salles que cada vez mais abrem brechas para a destruição do Meio Ambiente para favorecer a ganância dos que só objetivam o lucro, sem a preocupação com as consequências nefastas que poderão advir de tal relaxamento.

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