MANIFESTO PELA DECLARAÇÃO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA SOBRE O SANEAMENTO

Diante da fala do Presidente da República a respeito da resistência de brasileiros com relação à falta de saneamento – “o brasileiro não pega nada, pula no esgoto e não fica doente” – a Federação Nacional das Associações de Engenharia Ambiental e Sanitária (FNEAS) vem a público lamentar a declaração da autoridade máxima do País.

O Brasil vive uma triste realidade com relação ao abastecimento de água potável e esgotamento sanitário, onde quase metade da população (aproximadamente 100 milhões de brasileiros) não possui acesso à coleta de esgoto doméstico (SNIS, 2018), e 78 dos 100 maiores municípios do Brasil não atendem integralmente sua população com abastecimento de água tratada (TRATA BRASIL, 2019) – ao todo, são aproximadamente 35 milhões de brasileiros sem acesso à água tratada (SNIS, 2018). Além disso, o país enfrenta sérios problemas no tratamento e destino final de seus resíduos sólidos, de acordo com a ABRELPE (2019) aproximadamente 8% dos resíduos gerados no Brasil, um volume de 6,3 milhões de toneladas, ainda não é coletado, o cenário piora pois 40% do resíduo coletado é descartado em lixões ou aterros que não possuem condições mínimas para operação.

A forte correlação entre saneamento e saúde se comprova, ao serem avaliados dados referentes à taxa de internação por doenças – como cólera, febre tifóide, diarréia, infecções intestinais, entre outras (doenças de veiculação hídrica) – resultando em uma relação inversa onde quanto maior o acesso a saneamento de qualidade menor são as taxas de internação por doenças relacionadas à falta de saneamento (ABES, 2019).

Além da já existente falta de reconhecimento que o déficit no atendimento do setor (do saneamento) corresponde a potenciais problemas de saúde pública, o atual líder do poder executivo vem demonstrando descrédito com dados científicos e opiniões de técnicos, cientistas e profissionais da saúde brasileira, ao basear seu posicionamento de que brasileiros e brasileiras têm anticorpos e que a COVID-19 não se prolifere em argumentos infundados.

Não devemos ignorar que, inclusive, vírus são seres complexos de serem estudados. Os cientistas da Universidade da Carolina do Norte, Casanova et al. (2009), buscaram estudar outros dois vírus que possuem as mesmas características do vírus causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave, conhecida internacionalmente como SARS que também é um tipo de coronavírus (provavelmente um dos que primeiro causaram sérios problemas assim como uma pandemia em 2003). Os pesquisadores escolheram outros dois vírus que pudessem ter representatividade suficiente para determinar a sua persistência e para realizar avaliações de risco de transmissão por meio da água tratada e de esgoto doméstico.

Estudos já avaliam a permanência e infecciosidade dos vírus nas águas. A família dos coronavírus divide-se em 3 grupos, sendo que os grupos 1 e 2 incluem coronavírus humanos e de mamíferos (com o vírus da SARS inserido no grupo 2), e o grupo 3 é composto pelos vírus que afetam as aves. Os pesquisadores então, escolheram dois vírus, um do grupo 1 e um do grupo 2. Do primeiro grupo foi escolhido o vírus da gastroenterite transmissível (TGEV), um patógeno que ataca suínos e do segundo grupo, o vírus da hepatite do camundongo (MHV). A sobrevivência e persistência destes vírus foram testadas em água ultra-pura, água de lago e esgoto doméstico (este foi pasteurizado para que os demais microrganismos não interferissem na cultura dos vírus), em diferentes temperaturas. Os ensaios realizados resultaram que ambos os vírus persistiram na água ultra-pura, com capacidade infecciosa, por 49 dias a 25ºC para enfim declinar a sua capacidade infecciosa, já na temperatura de 4ºC, não houve indícios de declínio da capacidade infecciosa durante os primeiros 49 dias. Na água do lago, a persistência foi em torno de 12 dias à 25ºC e em torno de 14 dias à 4ºC. No esgoto doméstico, os vírus persistiram com capacidade infecciosa por 9 dias a 25ºC, a amostra de esgoto que permaneceu a 4ºC apresentou capacidade infecciosa em declínio apenas após 35 dias (CASANOVA, 2009)

É problemático o posicionamento de que diante da realidade de um país onde, além da falta de cobertura à coleta de esgoto doméstico (nem todo esgoto doméstico gerado é coletado), menos da metade (43,6 %) do esgoto coletado é tratado (SNIS, 2018) o fato de um cidadão ter contato direto com esgoto doméstico é tratado com naturalidade e certa ironia. Além de estudos comprovados na disseminação do vírus em água (tratada ou não), o método mais efetivo de não proliferação da doença é a boa higienização – com o hábito frequente de lavar as mãos. De que forma se nem todos os brasileiros possuem acesso à água potável?

Tratando de saúde pública, é essencial e indispensável que as diretrizes nacionais de saneamento básico sejam cumpridas. De acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE), houve aumento na geração de resíduos sólidos domiciliares, principalmente, durante a adoção de medidas de quarentena e isolamento, estimado em 15-25%, já em unidades de atendimento à saúde a geração de resíduos hospitalares passou a ser 20 vezes maior. Devido a isso, é de suma importância que as atividades de coleta, transporte e destinação de resíduos sólidos urbanos e de serviços de saúde sejam prestados garantindo medidas de prevenção aos trabalhadores contando com orientação da correta utilização e higienização dos equipamentos de proteção individual. É necessário enfatizar que nos lixões, onde são descartados significativo volume de reísduos, possuem grande número de catadores que têm contato direto com os resíduos, para esses profissionais o Estado deve dar assitência técnica a fim de reduzir os impactos a saúde dos mesmos e a proliferação dos do COVID-19.

Seguindo as recomendações da ABRELPE, nos domicílios em que houver morador(es) com confirmação ou suspeita de contaminação por COVID-19, os resíduos produzidos pelo paciente e por quem lhe prestar assistência devem ser acondicionados em sacos plásticos resistentes e devidamente lacrados. Em seguida tais sacos devem ser colocados dentro de um segundo saco plástico que também deverá ser devidamente fechado, e posteriormente apresentado para coleta regular de limpeza urbana (resíduos comuns). Deve ser terminantemente proibido pelos departamentos de limpeza urbana o descarte de tais resíduos para coleta seletiva, ou seu depósito em contentores destinados para fração seca (recicláveis), bem como seu abandono em vias públicas.

A gestão dos resíduos sólidos contaminados ou com suspeita de contaminação por COVID-19 gerados em unidades de atendimento à saúde ou locais com grande concentração de pessoas infectadas deve seguir a regulamentação aplicável aos resíduos infectantes do Grupo A1, conforme Resoluções CONAMA 358/2005 e ANVISA RDC 222/2018, necessitando de gerenciamento diferenciado dos resíduos comuns e tratamento prévio à sua disposição final. Apesar do quadro agravante, não há nenhuma evidência decorrente do COVID-19 que demande aos trabalhadores a adoção de precauções e proteções adicionais àquelas já comumente adotadas.

A pandemia exige ser encarada com seriedade para que as consequências, que podem ser fatais para milhares de indivíduos sejam minimizadas. O atual momento tenciona que políticas públicas de saneamento e saúde sejam repensadas e priorizadas como forma de valorização da vida e do bem-estar da população. Além disso, é uma oportunidade de contingência futura para outras áreas, pois, sabe-se que o investimento em saneamento representa uma significante economia na área de saúde.

Por fim, a FNEAS espera que a situação seja resolvida com profissionalismo e discernimento para que a pandemia seja superada prezando sempre em salvar vidas. Esta Federação reforça seu compromisso em colaborar com o Brasil, colocando à disposição da sociedade os(as) engenheiros(as) ambientais e os(as) engenheiros(as) ambientais e sanitaristas como os(as) profissionais capacitados(as) para colaborar no que couber aos assuntos correlatos à saúde pública – como, por exemplo, o saneamento.

Fontes:

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENGENHARIA SANITÁRIA (ABES), 2017. Ranking ABES da Universalização do Saneamento. Disponível em: http://abes-dn.org.br/pdf/Ranking_2019.pdf. 2019.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E RESÍDUOS ESPECIAIS (ABRELPE), 2020. Recomendações para a gestão de resíduos sólidos durante a pandemia de coronavírus (Covid-19). Disponível em: https://www.cnm.org.br/cms/RecomendacoesABRELPE_COVID19_23mar.pdf.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E RESÍDUOS ESPECIAIS (ABRELPE). Descaminho s do lixo. 2019. Disponível em: http://abrelpe.org.br/brasil-produz-mais-lixo-mas-nao-avanca-em-coleta-seletiva/.

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Regional, Secretaria Nacional de Saneamento – SNS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos – 2018. Brasília: SNS/MDR, 2019, 180p.: il.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Conselho Nacional do Meio Ambiente ‑ (CONAMA). 2005. Resolução nº 358, de 29 de abril de 2005. Dispõe sobre o tratamento e a disposição final dos resíduos dos serviços de saúde e dá outras providências. Publicada no DOU nº 84, de 4 de maio de 2005.

BRASIL, Trata. Instituto Trata Brasil. Ranking do Saneamento, 2019.

CASANOVA, Lisa et al. Survival of surrogate coronaviruses in water. Water research, v. 43, n. 7, p. 1893-1898, 2009.

GOMES, Pedro Henrique. Brasileiro pula em esgoto e não acontece nada, diz Bolsonaro em alusão a infecção pelo coronavírus. G1 Política, Brasília, 23 mar 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/26/brasileiro-pula-em-esgoto-e-nao-acontece-nada-diz-bolsonaro-em-alusao-a-infeccao-pelo-coronavirus.ghtml. Acesso em: 31 mar 2020.

Manifesto fruto de trabalho conduzido por Grupo de Trabalho constituído pelos seguintes profissionais:

Gabriel de Almeida de Barros – Rio de Janeiro/RJ

Jauana Riegel – Porto Alegre/RS

Vanessa Tres – Curitiba/PR

Antônia Tatiana Pinheiro Do Nascimento – Fortaleza/CE

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